CAPÍTULO 2
LIBERDADE RELIGIOSA – EM VISTA DA SUPREMACIA DA LEI
A potência mundial e império de Babilônia foi-se para sempre; e outro tomou o seu lugar — o poder e império da Medo-Pérsia. Aqui estava outro princípio de governo, e aqui é dado ao mundo outra lição em liberdade religiosa.
No Império medo-persa os princípios de governo eram diferentes dos de Babilônia.
Babilônia, como vimos, era não somente uma monarquia absoluta, mas uma autocracia—governo de um só homem, um absolutismo de um único indivíduo. A palavra do rei era a lei, e a lei era mutável segundo a vontade e a palavra do rei mudavam. O rei era a fonte da lei, sua palavra era a lei para todos os outros; mas quanto a si próprio não havia restrição da lei.
O governo medo-persa era também uma monarquia absoluta. Ali, também, a palavra do rei era a lei; mas com uma diferença fundamental quanto a Babilônia— uma vez emitida a palavra do rei como lei, essa lei não podia ser mudada nem contrariada pelo próprio rei. O rei mesmo ficava preso contra si próprio, por sua própria palavra ou decreto que outrora se tornara lei. O governo da Medo-Pérsia, portanto, era um governo de lei, seus princípios eram a supremacia da lei.
Como cabeça da administração dos negócios desse império, haviam três presidentes, dos quais Daniel era o primeiro . Devido ao conhecimento, integridade, habilidade e valor geral de Daniel na administração, o rei tinha em mente “estabelecê-lo sobre todo o reino”. Tornando-se isso conhecido despertou os ciúmes dos outros dois presidentes e dos príncipes; e eles conspiraram para pô-lo abaixo.
Primeiro buscaram “ocasião para acusar a Daniel” a respeito de sua conduta nos negócios do império. Mas após longa e diligente busca, e o escrutínio mais detalhado, foram obrigados a suspender seus esforços e confessar que nunca achariam “culpa alguma . . . nenhum erro, nem culpa” porque “ele era fiel”.
“Disseram, pois, esses homens: Nunca acharemos ocasião alguma para acusar a este Daniel, se não a procurarmos contra ele na lei do seu DEUS”. Mas não podiam achar ocasião nenhuma contra ele com respeito mesmo à lei do seu DEUS, até que eles próprios tivessem primeiro criado uma situação que tornasse inevitável a oportunidade desejada.
Seus longos e incansáveis esforços para encontrar alguma ocasião ou falta contra ele nos negócios do império tinham-nos convencido de sua absoluta devoção e lealdade a DEUS. Através da investigação deles, descobriram por experiência que ele não podia de modo algum ser levado a inclinar um fio de cabelo da estreita linha da absoluta devoção a DEUS. Mas essa era uma questão inteiramente individual, em que não havia qualquer interferência com homem algum em nenhuma maneira. E em sua conduta com relação aos outros e ao Estado, sua própria investigação conscientemente preconceituosa havia demonstrado que ela era na verdade benéfica.
Assim, não havendo terreno possível sobre o qual achar ocasião contra ele, até mesmo no que concerne à lei de seu DEUS, segundo fossem as circunstâncias e condições . Eles, portanto, sendo postos ante a necessidade de criar tal circunstância, da devoção inabalável de Daniel a DEUS criaram o meio pelo qual procederiam. Portanto, armaram um esquema ao qual atraíram todos os oficiais do império, e foram ao rei e disseram: “Ó rei Dario, vive para sempre! Todos os presidentes do reino, os prefeitos e sátrapas, conselheiros e governadores, concordaram em que o rei estabeleça um decreto e faça firme o interdito que todo homem que, por espaço de trinta dias, fizer petição a qualquer deus, ou a qualquer homem, e não a ti, ó rei, seja lançado na cova dos leões. Agora, pois, o rei, sanciona o interdito, e assina a escritura, para que não seja mudada, segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar”. Daniel 6:6-8.
O rei se deixou seduzir por essa proposta lisonjeadora de tão grande número dos mais elevados oficiais do império, e assinou o decreto. Daniel sabia que o decreto havia sido tramado, e que a lei havia sido assinada pelo rei. Sabia que era agora a lei do império—uma lei que não podia ser contornada nem alterada. Não obstante, foi para a sua casa, e ao aproximarem-se os períodos regulares de oração, três vezes ao dia, “orava e dava graças, diante do seu DEUS”. Então, em vista desse aberto desrespeito da lei imperial, apressaram-se até o rei e com muita deferência lhe indagaram: “Não assinaste um interdito. . .” O rei respondeu: “Esta palavra é certa, segundo a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar”. Então os autores da artimanha relataram: “Esse Daniel, que é dos exilados de Judá, não faz caso de ti, ó rei, nem do interdito que assinaste, antes três vezes por dia faz a sua oração”.
Então o rei ouvindo isso “ficou muito penalizado, e determinou consigo mesmo livrar a Daniel; e até ao pôr-do-sol se empenhou por salvá-lo”. Mas por todo aquele tempo e em toda ocasião o rei era defrontado pelos ardilosos homens com o apelo: “A lei; a lei”. “Sabe, ó rei, que é lei dos medos e dos persas que nenhum interdito ou decreto, que o rei sancione, se pode mudar”. A supremacia da lei restringia o próprio rei; não havia escape; e, em meio a grande relutância, “ordenou que trouxessem a Daniel, e o lançassem na cova dos leões”.
O rei passou a noite em jejum e sem dormir. Mas bem cedo de manhã ele apressou-se à cova dos leões, e “chamou por Daniel com voz triste; disse o rei a Daniel: Daniel, servo do DEUS vivo, dar-se-ia o caso que o teu DEUS, a quem tu continuamente serves, tenha podido livrar-te dos leões?”
Daniel respondeu: “Ó rei, vive para sempre! O meu DEUS enviou o seu anjo, e fechou a boca aos leões, para que não me fizessem dano, porque foi achada em mim inocência diante dele; também contra ti, ó rei, não cometi delito algum”. E ali ficou demonstrado de modo perfeito e para sempre que a pessoa que desrespeita qualquer lei que afeta o culto a DEUS é inocente perante DEUS, e também não comete “delito algum” ao rei, ou ao Estado, ou à sociedade, ou a qualquer princípio de lei ou governo.
Tudo isso em divina verdade demonstra novamente que nenhum governo terreno pode jamais ter qualquer direito ou jurisdição em questões de religião, ou seja, no “dever que temos para com o nosso Criador, e na maneira de dele desincumbir- nos”. Nesse caso ocorre a demonstração adicional de que nenhum governo pode jamais ter o direito de incorporar na lei provisões que respeitem à religião, e então pleiteie a supremacia e integridade da “lei” ; que “não é basicamente uma questão de religião, mas somente de lei”, que “não estamos pedindo por observância religiosa, mas somente pedimos respeito à lei”. No caso de Daniel e a “supremacia da lei dos medos e dos persas”, a resposta divina a todos esses apelos é de que nada pertencente à religião pode jamais por direito ter qualquer lugar na lei.
O direito de perfeita individualidade em religião é de caráter divino e, portanto, um direito absolutamente inalienável. E tornar as observâncias ou proibições religiosas uma questão de lei não afeta o livre exercício desse divino direito. A plenitude do direito, e a perfeita liberdade de seu exercício permanecem sempre os mesmos, mesmo embora a religião seja tornada parte da lei. E quando a religião, a observância ou proibição religiosa é fixada na lei, conquanto a lei seja suprema e inflexível como a dos medos e persas, o divino direito e perfeita liberdade da individualidade em religião então se estende à lei que incorpora a religião, e tal lei é simplesmente lei nenhuma . O subterfúgio de impor observâncias ou proibições religiosas sob a capa da “supremacia e integridade da lei”, em vez de eliminar ou de algum modo limitar o direito divino e a perfeita liberdade e individualidade em religião, simplesmente reage na extensão de realmente eliminar todo terreno de reivindicação quanto à “supremacia e integridade da lei”—na realidade anulando a lei específica no caso.
A lei civil é certamente suprema no campo das coisas civis, mas no campo das coisas religiosas simplesmente não tem lugar em absoluto.
Na presença do divino direito da individualidade em religião, no que se refere a governo autocrático, ilustrado no caso do rei Nabucodonosor, a palavra do rei deve mudar.
Na presença do direito divino de individualidade em religião, no que se refere à supremacia e inflexibilidade da lei, ilustrada no governo dos medos e persas, qualquer lei que afeta ou contempla a religião, simplesmente não é lei alguma.
O campo da religião é o de DEUS. Nesse campo, DEUS somente é soberano, e sua vontade é a única lei. E nesse campo o indivíduo posta-se só com DEUS, sendo responsável somente para com ele.